Meu Reverendo Padre
Decorreram já cem anos desde que o Fundador dos Agostinhos e das Oblatas da Assunção entregou a sua alma a Deus, no termo de uma existência bem à letra consumida pelo amor apaixonado de Jesus Cristo e do seu Reino, que devia estabelecer-se numa sociedade nessa altura em plena transformação. Simples coincidência, ou antes marca última de semelhança, impressa pelo Mestre na fisionomia do seu intrépido servo: o Padre Emmanuel d’Alzon morre em Nimes a 21 de novembro de 1870, numa atmosfera de drama e de derrota para a Igreja. O Governo francês está a fechar mais de 260 estabelecimentos escolares católicos e a expulsar mais de 5.000 pessoas de Congregações não autorizadas. Quando se conhece o combate travado pelo Padre d’Alzon em favor da liberdade da Igreja, especialmente no campo do ensino, as circunstâncias da sua morte seriam, por si sós, rico assunto de meditação. Mas é toda a sua vida que deve manter-se fonte de inspiração para a grande Família Assuncionista e para o Povo de Deus.
O Santo Padre, fazendo-se eco do desejo que vós lhe expressastes, tem o especial prazer de se associar à ação de graças dos Agostinhos e das Oblatas, diretas fundações de Emmanuel d’Alzon, mas igualmente das Religiosas da Assunção, das Irmãzinhas e das Orantes da Assunção, instituídas pelas suas filhas espirituais ou pelos seus primeiros companheiros. Felicitando calorosamente todas as comunidades assuncionistas, espalhadas pelo mundo inteiro, por terem querido fazer deste ano centenário um tempo de novo conhecimento aprofundado da vida e da obra do seu Pai comum, o Papa tem o gosto de partilhar com elas “os sentimentos que tal acontecimento lhe sugere, e de as animar assim a continuarem a sua caminhada apostólica com uma fé capaz de transportar montanhas, segundo o desejo de Jesus no Evangelho.
Se é verdade que os mais notáveis discípulos do Senhor têm muitos traços comuns, alguns dentre eles dão a impressão de terem reunido, numa síntese viva e sedutora, as características de certo número dos seus irmãos quanto à vida cristã e à santidade. O vosso Fundador faz logo pensar no Apóstolo Paulo, radicalmente entusiasmado pelo Mistério de Cristo e da Igreja; mas igualmente em Santo Agostinho, o investigador ansioso e amoroso da verdade de Deus; em São Francisco, adorador da Paixão de Cristo; em São Domingos, dissipando as trevas do erro e da ignorância religiosa; e em Santo Inácio, deixando a carreira militar para se tornar soldado de Deus. Como eles, Emmanuel d’Alzon deixou-se invadir por Cristo, habitar por Ele. Como nesses, esta identificação realizou-se à custa de um despojamento total de si mesmo. Para chegar a esta união íntima a Cristo, o vosso Fundador toma os meios eficazes. Abisma-se na adoração, à maneira dos místicos que se sentem como que submergidos pelo Absoluto de Deus. E nela passa horas, de dia ou de noite. Esta relação viva com o Pai, o Filho e o Espírito transforma-se em súplicas ardentes para trabalhar no Reino de Deus com forças purificadas e centuplicadas pela graça. Este laço rigoroso, entre a contemplação e a ação, é tipicamente alzoniano, o que muito impressionou os contemporâneos do Padre. Hoje, aquele que foi durante toda a vida um interrogador exigente dirige-se ainda aos seus religiosos e religiosas nestes termos: “O vosso contacto pessoal e comunitário com Jesus Cristo é suficiente e determinante? Podeis falar de proporção entre os vossos compromissos apostólicos e a vossa vida de oração?”. Além disso, a multiplicação atual dos grupos de oração — que bem parece constituir sinal dos tempos — reformaria certamente a interpelação do Padre d’Alzon dirigida a todos os seus. Chamados às vezes a inserirem-se em tais grupos, os seus discípulos não deveriam esquecer que se comprometeram a dar um testemunho original de oração comum e de oração particular, na Igreja e pela Igreja.
Bem inserido na sua época, que se levantava das agitações da Revolução e procurava caminhos novos, Emmanuel d’Alzon deu prova de disponibilidade excepcional a serviço da Igreja. A diocese de Nimes, a que ele se dedicou de corpo e alma durante mais de 40 anos como Vigário-Geral, é disso testemunha privilegiada. E, ao mesmo tempo, as suas lutas e as suas fundações em favor do ensino católico, dos patronatos, dos orfanatos, da imprensa, das peregrinações, das igrejas do Oriente, revelam a sua profunda solicitude pelos homens do seu tempo, com atenção cada vez mais pronunciada em favor dos mais fracos e dos mais necessitados. É sabido quão grande foi a sua alegria, quando viu o seu irmão, o Padre Pernet, fundar as Irmãzinhas da Assunção para o serviço de evangelizar as famílias operárias. Podia-se permitir escrever mais tarde: “Um assuncionista deve estar descontente de si mesmo enquanto não fez cem vezes mais do que pode… E o seu repouso consiste então em fazer mil vezes mais” (Ecrits spirituels, p. 182). Os seus filhos e as suas filhas não esqueceram esta linguagem dinâmica. Durante quase 150 anos, realizaram um trabalho apostólico considerável, com desinteresse que merece citar-se como exemplo. Baste mencionar, neste ponto concreto, o muito meritório trabalho da Boa Imprensa, em muitas partes conhecido e apreciado. Na hora atual, atendendo a uma substituição insuficiente e à multiplicidade das necessidades, o vosso Fundador, tão inventivo e audacioso, falaria aos seus discípulos em termos equivalentes aos que empregava no Capítulo de 1873: “Nós não somos senão 50, mas devemos trabalhar como 1.000…”. Animava-os energicamente a descobrirem os novos sectores de miséria religiosa, moral, intelectual e corporal, a elaborarem em comum os seus projetos novos ou revistos, a evitarem as dispersões de energia apostólica, e a concentrarem as forças nos objetivos mais importantes, desejados ou propostos pela Igreja. A disponibilidade alzoniana é profundamente eclesial, sempre ligada ao Sucessor de Pedro. Numa palavra, pela voz do Padre d’Alzon é a Igreja que ainda hoje apresenta aos Assuncionistas uma pergunta fundamental: “As vossas atividades ajudam os homens a encontrar a Deus, a procurar em Deus o sentido da sua vida?”.
Esta participação corajosa na vinda do Reino de Deus, neles e à volta deles, sem compromisso e sem anonimato, sempre alimentados na intimidade com Deus, requer também dos Assuncionistas o amor do estudo. Como Vigário-Geral, o Padre d’Alzon impelia sem cessar o clero de Nimes para o esforço intelectual nas ciências sagradas. Fundador de Congregações, estimula os seus religiosos — e mais ainda depois do Concílio Vaticano I em que ele participou — a dessedentarem-se nas fontes da Escritura e dos Padres. Os Assuncionistas deram numerosas provas do seu amor ao estudo. A revista “Etudes byzantines”, tão preciosa para o conhecimento das Igrejas Orientais, testemunha ainda hoje a fidelidade deles ao espírito do Fundador. Seja a celebração do centenário da sua morte ocasião providencial para renovarem as suas convicções quanto à importância fundamental da “formação primeira” e permanente no plano intelectual. Disso depende o bom estado e o dinamismo das suas Congregações, para maior realização do “Adveniat regnum tuum”.
Por fim, semelhante exercício de ação apostólica e de vida de oração precisa de se apoiar numa vida fraterna muito sólida. Numa linguagem que é dos nossos tempos; o Padre d’Alzon encontraria certamente os termos para convencer os seus filhos e filhas de que a vitalidade apostólica depende da vitalidade comunitária. Seria, ao mesmo tempo, bom e severo para os religiosos que desejam levar vida independente. Não deixaria de sublinhar que as modificações numerosas — e muitas vezes bem felizes — impressas desde o Vaticano II nas estruturas tradicionais da vida comum, são insuficientes se não atingem o nível profundo das relações interpessoais. Não falava ele próprio da comunidade como de uma casa de cristal, em que as relações são constituídas por franqueza e estima, por cordialidade e simplicidade? São essas fraternidades que determinam e mantêm o acordo a respeito dos valores essenciais, e constituem terra firme em que religiosos e religiosas podem apoiar-se em caso de dificuldades pessoais ou de aplicação de novos projetos. Hoje; parece que o Padre d’Alzon convida ainda a grande família da Assunção a tornar-se cada vez mais comunhão de comunidades fraternas, espirituais e apostólicas. São essas equipas de vida que podem ser, para os jovens do nosso tempo uma Boa Nova, e despertar num certo número o projeto do dom total ao Senhor. Parece que várias comunidades se preocupam com isso. O Papa deseja vivamente que os discípulos do Padre d’Alzon — lembrando-se mais que nunca do efeito extraordinário que ele exerceu no século passado em favor das vocações sacerdotais e religiosas, e sem cessar de promover os leigos em responsabilidades da Igreja — contribuam ativamente neste novo florescimento de vocações de que o Povo de Deus tem necessidade vital.
Tais os sentimentos dominantes que o Santo Padre deseja exprimir-vos a vós e a todos os vossos irmãos e irmãs em religião. São o fruto de meditação pessoal sobre a vida exemplar do Padre d’Alzon e testemunho do profundo afeto para com a família assuncionista. Está certo de que todas as comunidades acolherão esta mensagem com simplicidade e alegria, a fim de encontrarem nela a coragem para o presente e para o futuro. Admirando a devoção, ao mesmo tempo sóbria e sólida, do Fundador para com a Virgem Maria, especialmente contemplada no mistério da sua Imaculada Conceição, da sua Anunciação e da sua compaixão — quando a própria obra tinha sido fundada no Colégio da Assunção —, o Papa confia à intercessão de Nossa Senhora a vida religiosa e o trabalho apostólico dos filhos e das filhas do Padre d’Alzon; e invoca sobre as suas respectivas Congregações as mais abundantes Bênçãos do Senhor.
Sentindo-me feliz por vos transmitir estes pensamentos e estes votos em nome de Sua Santidade, peço-vos que acrediteis, meu Reverendo Padre, na sinceridade dos meus sentimentos profundamente dedicados em Cristo.
Agostino Card. Casaroli
Secretário de Estado